5, OUT 10
Ontem a Isabel me deu um boné verde-oliva com a aba em forma de bico de pato. Eu o coloquei na mesma hora, pra agradá-la.
Lembro que tinha uma gorda parada na frente do caixa do Burger King. Ela desembrulhava um pouco o pacote e, enquanto
aguardava o troco, o colocava bem perto da cara, como se tivesse se livrado de todos os sentidos, menos do olfato.
Eu tinha posto a mão no braço da cadeira e quase fui subindo com ela até chegar no cabelo e na nuca da Isabel. Mas não fiz nada
disso. Fiquei apenas segurando o braço da cadeira e ouvindo ela falar sobre as vantagens de irmos pra casa da avó dela no natal.
"Estou só dizendo." E eu olhava pra ela com cara de quem estava só ouvindo. Depois de ajeitar o boné umas duas vezes na minha
cabeça, ela virou um pouco a cara e, meio ofendida, ficou olhando a gorda escolher a mesa longe da escada-rolante pra não entalar
o corredor. Acho que ela quase acreditou que nunca tinha visto uma gorda antes, ou que só agora tivesse aprendido a olhar. Eu
disse: "Preciso comprar um memory card novo.". "Compra, coração. Ou então me pede direitinho que eu compro pra você."
2, OUT 10
Estão sentados à sombra, o meu tio, meu avô e meu pai. Estão tendo aquela conversa que se tornou detestável pra mim no último
mês. Ponho o copo de limonada em cima da mesa e olho na direção das janelas, com seus quadrados refletidos de céu branco. Meu
avô reabre o mapa rodoviário sobre o colo, olha pr'aquilo um instante, parecendo assimilar tudo ao mesmo tempo. O tio bebe mais
um gole da vodka com laranja, e fica girando o anel de casamento em volta do dedo.
29, SET 10
Antes de ir pra cama, sento no sofá marrom da sala e assisto um pouco de tevê. É um filme de guerra. Fico vendo os soldados
cometendo crimes e cumprindo ordens (se é que há diferença). Um deles, com os lábios esmagados e chupados, fala
desajeitadamente a respeito de todas as desculpas em que teve a chance de pensar. Desculpas que vai dar a mãe ao pai e a
namorada, se voltar. Mas na cena seguinte a coisa toda explode. Ele morre. Os outros soldados o carregam numa padiola. Alguém
junta as pontas da cortina sobre a sua cabeça. Ela se abre de novo.
27, SET 10
Enquanto leio o Caderno de esportes pela manhã, a Isabel costuma tirar a colher da minha mão e lambê-la pra deixá-la limpa.
Depois ela enfia a colher no pote de geléia e espalha tudo na torrada com a barriga da colher. A boca parece ficar cheia de efes e
emes quando mastiga. E ela quase sempre fecha os olhos pra poder pensar no sabor.
26, SET 10
A lâmpada do banheiro queimou. Contei o dinheiro na carteira, de novo. Ainda tinha tempo de sobra. Levantei a persiana e fiquei
olhando pela janela, esfregando a manga da jaqueta no vidro quando ele embaçava. Pensei em ir a pé pra aula. A mãe perguntou o
que eu estava olhando. "Nada", respondi sem me virar. Os dois filhos menores do vizinho estavam pintando uma pequena mesa de
ferro de jardim. Sentei perto da porta da cozinha, rasguei um pedacinho do canto da caixa de fósforos e fiquei mordendo.
24, SET 10
Toco no assunto com 4 anos de atraso e nem sei se sou capaz disso. De vez em quando eu via pontos onde a água transbordava
do bueiro, subia o meio-fio e inundava algum jardim debaixo da lâmpada do poste. Era a segunda vez que eu dirigia na chuva.
Estava tão escuro que poderia muito bem ser meia-noite. Mesmo assim eu enxergava as poucas pessoas ao lado e depois atrás do
carro pelo retrovisor. Lembro que desliguei o rádio e fiquei escutando os limpadores de pára-brisa indo e voltando sobre a água que
espirrava do capô contra o vidro. Passei pela esquina vazia onde costumava pegar o ônibus quando saía do colégio. Entrei na
Perimetral em segunda e depois acelerei. Foi provavelmente uns 40 metros depois que senti que um lado do carro passou em cima
de alguma coisa. Tive a sensação de que aquilo já acontecera. Estacionei. Tirei a camiseta e a estendi sobre o banco do carona. Abri
a porta quase em frente a uma caixa-do-correio e desci. A água da sarjeta passava por cima dos meus pés. Caminhei até aquela
coisa branca estirada no meio do aguaceiro. Achei que fosse um cachorro. Eram dois gatos. Um gato e uma gata, na verdade. O
gato estava morto. E a Iris (dei pra ela esse nome) estava mais assustada que machucada. Coloquei-a com cuidado em cima da
camiseta e deslizei de novo pra trás do volante. As sensações se desfaziam e se refaziam enquanto eu dirigia. A cabeça da Iris
balançando devagar, da esquerda pra direita.
Pouco depois, enquanto subia a escada da clínica com a Iris no colo, eu já tinha me perguntado umas mil vezes: quem sabe ter uma
gata não é uma coisa com a qual eu poderia acabar me acostumando? Mais tarde, quando o veterinário me perguntou se eu ia
deixá-la pra adoção, a Iris olhava pra mim, vendo que tinha uma chance. E de novo veio a sensação de que aquilo já tinha
acontecido.
22, SET 10
O ar está com cheiro de chuva. A minha irmã pergunta se eu não vou fechar a janela. Ela puxa o banco debaixo da mesa da cozinha
e senta de frente pra fatia de bolo de aniversário que trouxe do serviço. Pega uma colher de plástico branca e antes de comer estica
bem o braço e coloca a mão em cima do interruptor e, sem levantar, acende a luz. Eu ainda preciso telefonar pro Ivan e confirmar se
vou ao Mojo jogar videogame sábado de manhã. Fico pressentindo os primeiros pingos de chuva diante da janela. Virando a cabeça,
dá pra ver que tem um carro estacionado em frente a casa do lado e três caras sentados no capô. Um deles, na certa o líder, deixa
que o skate escorregue do colo quando fica de pé.
21, SET 10
Agora já faz duas horas e meia que estou sentado na cama. Duas horas e trinta e dois minutos, pra ser exato. Eu sei disso porque
estou cuidando o despertador na mesinha de cabeceira. Estava fazendo um desenho da casa que tínhamos em Almada. Mas sem
aquele segundo andar em forma de caneta que meu pai construiu depois. Fiquei com a perna dobrada até ter a sensação de que
ela iria formigar. Daí estiquei, apoiando o calcanhar na trave que une os pés da cadeira. Apoiei o corpo no cotovelo em cima do
travesseiro e fiquei ouvindo o barulho enjoativo da máquina de lavar.
19, SET 10
Ando com mania de inventar variações pras coisas que leio no jornal. Faço a mulher que sofreu o acidente de ultraleve virar a
mocinha que conseguiu evitar que o filho do prefeito mudasse de sexo. Ou pior. Hoje tinha uma foto no canto da página de uma
ponte imitando a Golden Gate. Ali eu enfiei a ex-ministra de Relações Exteriores de Israel e o Rafael Nadal, forçando as duas notícias
anteriores a cooperarem com as declarações do Sarkozy de que a comissária européia de Justiça, Viviane Reding, faria muito bem se
recebesse os ciganos de pernas abertas em Luxemburgo. No fundo, eu fico me escutando dizer: as coisas devem ter ido longe
demais pra você estar gastando os olhos no jornal de domingo.
18, SET 10
Cada vez que assisto um episódio de Law & Order morre um bocadinho do meu respeito por mim.
17, SET 10
Guardei o bilhete da tia no estojo da minha gaita-de-boca. (Este é um dos assuntos que tenho de evitar, sob pena de não passar a
nenhum outro (a inércia é uma força muito poderosa na minha vida)). Esperei ela levantar. Ela levantou. Então fui até o banheiro e
voltei com o bolso da jaqueta abastecido de aspirinas. Tirei o carro da garagem e a levei ao ginásio. Depois matei um pouco de
tempo na piscina do clube, fazendo o papel de Vincent Gallo em Buffalo 66.
14, SET 10
Os homossexuais foram descomplexados, mas isto não lhes dá o direito de ocuparem a cancha com redes de vôlei. Fosse só isto e
diria apenas: "escolhi mal o dia pra jogar bola". Mas não. A badalhoquice não tem limites. Por mim, bem que a OMS podia recolocar a
homossexualidade na lista de doenças mentais. Não porque seja assim, mas porque não me interessa nada o que diz a OMS sobre
os homossexuais, nem o que dizem os homossexuais sobre a OMS.
12, SET 10
Ontem saí pra pegar o carro na oficina. Às oito da manhã. O banco de trás estava forrado de plástico, como se tivessem trepado lá
dentro. "Pra que o plástico?" "Pra não sujar." Apesar do clima de Massacre da serra elétrica, fiquei imaginando o cara sentado lá
atrás, tirando a roupa de alguma mulher e pensando como é engraçado quando os seus sonhos se realizam. Foder com os dedos
do pé esmagados e levando cotoveladas. Sei lá. No meu caso falta vontade de reclamar. Com frequência. Ainda assim é o melhor
mecânico por pelo menos duas razões: é o mais barato e aceita cheque de terceiros.
10, SET 10
É preciso reconhecer, ainda que com alguma pena, que o cinema italiano e eu temos muito pouco em comum. Isto não precisa ser
sempre assim, mas é muitas vezes verdade que não consigo ver um filamento que seja que relacione, por exemplo, Ladrões de
Bicicleta e a minha necessidade de arranjar emprego. O cinema próximo da realidade, ou da mesma coisa com qualquer outro nome,
é o único que me dá uma grande trabalheira. Já os Fellinis que mais me interessam continuam sendo os que não vi, ou seja, dois.
8, SET 10
Comi alguns tremoços que a minha mãe colocou num pires. A chuvarada de ontem foi uma coisa da qual eu só vi um pedaço. Gosto
de perceber com pelo menos 3 horas de antecedência que vai cair temporal. A namorada do meu irmão e o meu irmão também
estão na cozinha, pegando coisas no armário e depois cada um esperando a sua vez de usar a pia ou a geladeira. Os temporais
não costumam ser muitos esta época do ano. Mas costumam ser mais fortes. Meu irmão secou a mão na perna da calça e ligou a
tevê que fica no suporte uns quinze centímetros em cima da geladeira. Tinha acabado o programa de esportes. Nem por isso ele
desligou ou abaixou o volume. Dez minutos antes eu estava aqui sozinho com o notebook no colo. A minha mãe foi a primeira.
Entrou e ficou parada na frente da geladeira com a porta aberta. Depois se virou e foi até a gaveta da pia e pegou uma colher e
segurou a porta da geladeira antes que ela se fechasse.
Quando a namorada do meu irmão aproxima a caneca do rosto, ela fecha os olhos; acho que pra sentir melhor o aroma do café, ou
pra evitar que o vapor magoe os olhos, ou talvez pra sondar as implicações latentes de alguma coisa que eu não faço nem idéia.
Meu irmão está de pé olhando pra televisão e sacudindo a caixa do suco de laranja pra que o caldo se misture e fique mais espesso.
Dá pra sentir o cheiro de papelão e laranja e escutar o suco se chacoalhando lá dentro.
A namorada dele abriu os olhos e olhou pra tevê com uma aversão fingida. Depois olhou pra mim com uma aversão real. Ela disse:
"deixa o bigode crescer de novo. A barba também.". Sem tempo de sabe-se lá o quê, me levantei. Beijei a mãe. Depois disse (num
volume que só a namorada do meu irmão ouvisse): "eu adoro ser a Kryptonite das burras".
6, SET 10
Durante a aula de Construção do Edifício IV, olhei bem a cabeça de mujique do professor e fiz dela dois esquissos a lapiseira na
última folha do caderno. Vai acontecer de ir gostando cada vez menos de estudar. D., L., F., V.: em volta de mim é este pequeno
alfabeto de homens e mulheres erguendo os braços, como se amanhã tivesse prova. Dá ares de filme do Louis Malle, só que é
tudo real.
À noite entrei de bicicleta no pátio da casa da minha tia e meti por baixo da porta da garagem os três DVDs do Wong Kar-Wai que
ela me havia dado. Quando montei outra vez na bicicleta, acho que ela (com meu primo e tio) apareceu na janela da sala. Mas é
difícil ter certeza, porque estavam mais ou menos tramados, e o álcool já não dava pra essas desinibições de voltar a cabeça e olhar
pra trás.
5, SET 10
2, SET 10
Sem a oportunidade de dar uma volta, peço pra ir ao banheiro e vou. Lavo as mãos e o rosto e me enxugo. Dentro de 4 minutos
tenho de voltar à mesa e continuar uma conversa que quase não me diz respeito. Nem é preciso ajeitar melhor o sofá onde estas
coisas estão sentadas. Cada dia de estágio tem sido, no fundo, um encontro com camelos com o menor número possível de
mediações. Olho a minha cara no espelho e me esforço a rir. Não consigo. Puxo a descarga. Saio. Vamos ver se é possível ser feliz
atirando o mundo por uma ravina abaixo. A minha avó que está no hospital há três meses diz que é. Que foi.
30, AGO 10
O pessoal está se dando conta de que o Barack Obama não vai tirar nada da cartola. Finalmente viram que a diferença entre um
sorriso do Sidney Poitier e uma rua sem saída não é assim tão grande.
Por falar em ruas sem saída, a minha namorada já deixou claro: qualquer livro que não ofereça a descrição de um blowjob até a
página 30, deve ser riscado da sua lista de presentes de natal.
28, AGO 10
Hoje vi um cavalo ser atropelado. Ia à biblioteca devolver uns livros (ando com uma enorme falta de vontade de ler). O motorista
desceu do carro. E com as mãos na cintura (como uma xícara de duas alças) ficou olhando pro animal, aparentemente imune ao
triste poder que emanava. No banco de trás do carro ao lado, umas crianças tremelicavam como células num microscópio. O cavalo
bateu e raspou os cascos no chão, como se pudesse correr deitado; fez isso por uma horrível contração de músculos e varizes.
Acabei pedindo pra renovar o empréstimo dos livros, mas estavam reservados por outra pessoa e tive de deixá-los. Não tinha
parado de pensar no que acabara de ver. Atropelar e matar cavalos é ainda mais errado que atropelar e matar gente.
Uns minutos depois de entrar em casa, tirei a roupa e fui pra debaixo do chuveiro: foi um banho de missa negra como o que
havia inaugurado a rivalidade entre o nosso descenso ao mais confortável modo de vida que este planeta já conheceu e a subida
do cavalo àquilo que dizia o meu professor de história todas as quintas-feiras, a saber, de que a única saída de Auschwitz era a
chaminé. Eu acho que a morte não redime e não há chaminé nem corrimão que chegue.
Liguei a tevê. Me atirei na cama e dormi imediatamente, como se aprende a dormir na infância. Mais tarde, reabri um pouco os olhos.
Queria largar o controle que imaginava ter ainda na mão e me perguntava que horas seriam. Virei um pouco a cabeça, podia ver os
meus tênis embaixo da cadeira: uma esquerda e uma direita que não admitem matizes nem se influenciam reciprocamente, e que
(apesar das coisas estarem assim) sou capaz de amarrar até com o mais fino dos meus pentelhos.
26, AGO 10
A minha professora de inglês diz que costumo ser alguém que parece que aprendeu tudo aquilo que é acessório na construção
de um discurso apropriado. Poderíamos fazer a mesma crítica ao Ang Lee, e não fazemos. Deve ser porque é homossexual,
asiático e todas essas baboseiras pra alimentar zumbis.
25, AGO 10
Andei até a Perimetral, mais rápido que o metrô. Vi como é que realmente se almoça na grama. São quase duas da tarde.
Pensei em ir ao cinema ver o que estiver passando. Ainda não decidi. Não há urgência também. Porque, no fim das contas,
nunca seremos muitos a falar mal dos filmes em que não há um John Cazale. Os meus maus-gostos são assim. Habituem-se.
24, AGO 10
Acabei de olhar em volta. Eu sou suspeito, mas acho que tenho o direito de não gostar que ela apalpe os meus braços como
se fossem pães, ou como se estivesse prestes a dizer: "Você vai ser avô!". Assim mesmo, sem ter sido pai. "Ter netos é um
copo d'água pra sua sede, se você estiver com sede." Então eu só tenho de estacionar o carro na sombra e deixar o corpo
mendelianamente funcionando numa orgia de alavancas? "É."
Volto pra casa a pé. Subo a Bonjardim com o polegar enfiado no laço da mochila. Reparo que a minha mãe deixou os
travesseiros na janela pra apanhar sol. O celular vibra (de novo) no bolso da calça. Por falar nisso, eu preciso dizer à tia que
não irei dizer mais nada. Primeiro porque sou um daqueles que deve dar gargalhadas sempre que ouve a tia falar que não
tomou a atitude que tomou. Segundo porque a explicação estava na cara dela. Agora é esperar. Até às 23h basta ligar os
poucos eventos e ver todas as desculpas se tornarem válidas.